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Chegou em casa com os trejeitos de cinzeiro. Subiu as escadas e tombou sobre a cama. Desde as dez horas ouviu o chamado de seu nome para comparece à cozinha. Fingiu ser alucinações, culpou o sol quente e o mormaço e se deu mais vinte minutos. Com a cara chapada ainda e as marcas dos lençóis andou pela sala, ultrapassou o som da TV, lavou o rosto sem decidir se esse era um dia real ou não. As pernas latejando como se fossem um coração. Um gosto da cinza que fica na superfície rebaixada. No fundo.

Seu pai assistindo aquele programa sem qualquer finalidade e que ela acreditava dar tanta importância quanto ela mesma. “É o homem no centro do universo”, pensou ela. Uns gritos de seu sobrinho. E ainda nem era a hora de pico. Faltavam meia hora para as doze.

Procurou um café e encontrou cebola não-picada, pimentão sem cortar, arroz sem fazer, feijão no fogo, nenhuma salada ou um gole de café bem passado.

Ainda sob a tempestade que se formava decidia se era ou não um dia real.

Ela mesma perguntava se não era uma miragem sua. Um oásis decaído, sem forças pra ser uma beleza em meio a um deserto vivo. Queria ela mesma ser enigmática como um sorriso. A pergunta que sai da boca da esfinge. Castigou o estômago. Um dragão nas suas formas arredondadas. Uma pequena-burgesa-dragoa. Antes de suas asas abrirem, sentiu a corrente de ar passando.

Ela conhecia essa tempestade. E depois dela não vem a bonança.

Bebeu água, kisuku de laranja-lima, mas o problema era a garganta úmida e fria. Sob os olhos de seu pai, sob o teto dele, não poderia fumar, nem mostrar suas escamas.

Um caos de engarrafamento na sala de casa. Muito som, muito trânsito, muitos relâmpagos buzinas e buzinas relâmpagos. Muitos dedos-na-cara, muitos raios. Muita correria, muito salve-se-quem-puder ou em outras palavras: cada um que salve o seu.

Tinha a sensação de dejà vu. Ela própria pré-vista por alguém. Como uma grande embarcação que só herdava as pessoas e seus papéis. Cronometrou o feito pelas partes desse todo: sua mãe: irá levar o sobrinho à escola; os demais: fugir da louça procurando suas válvulas de escape.

Em um segundo, apenas ela e o pai na sala. “Ouxi...”-alguma coisa mal compreendida, disse seu pai.

No silêncio da sala, o pai ouvia delicadamente cada grito da garganta dela. Os goles de saliva descendo goela abaixo. O coração batendo no teto. Ele, por vez, calçou as sandálias. Saiu para a rua e deixou o ventilador da sala ligado.

Ela subiu as escadarias que davam acesso à laje para fumar seu cigarro com o sol, e afastar o transtorno com o vento. Um sorriso consumindo fogo no calor abrasante.

Olhava para o sol, sentia o calor completo no seu corpo, a cada tragada. Destravou o cigarro dos dedos e segurou com os lábios. Fechou os olhos. No que aspirou, pensou: desceu quente essa. No que inspirou, o calor já não lhe subiam pela laje da casa. Não era reflexo do sol. Pouco menos a chama do cigarro. Vinha de dentro. Um lugar entre os pulmões e as células do corpo. Caminhando por cada veia. Fumegou a casa. Não. Não era um dia real.

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Noves fora zero


ô pouca vergonha. Acabei de sair do supermercado, que na verdade é mais uma mercearia, um mercadinho, e não compreendo como o básico foi se tornar tão caro. Não moro em cidade grande, não tenho as possibilidades de cidade grande. E possibilidade aí, não é de ir ao teatro não, vamos colocá-lo por esse instante no plano do supérfluo. Ou melhor, o orçamento pode colocá-lo no plano do supérfluo. Mas, para o necessário, uma parte do mínimo de dignidade, eu gastei 30 reais: papel higiênico que não assa a bunda; lingüiça e josé fina tanto para o feijão como para substituir a carne; cebola, por que dá pra fazer tudo com cebola (me perdoem os grandes mestres, mas ô cebola que salva minha vida...); não preciso mais de leite, em pó ou em caixinha, que é o que os mercados e congêneres oferecem; carne para hambúrguer (maravilhoso, pois ao mesmo tempo que é a medida certa daquele pedaço de bife do almoço deixa uma coisinha especial para o café da noite ); detergente; sabão em pó para lavar cuecas e tudo mais que dé. Só isso por 30 reais. Reais.

Real mesmo é esse disparate. Nessas lojas de comida tudo é restrito. Não dá pra fugir do que tá na prateleira. Qualquer dia desses irei sentar e fazer o orçamento dos preços com o dono do mercado: o senhor sabe que estamos em uma cidade que contém cerca de 30 mil habitantes, não é mesmo? Cidade pequena, então. Na zona urbana, deve ter umas cinco mil pessoas. O senhor acha que todo mundo aqui recebe um salário? O senhor acha que aqui tem o mesmo nível de empregabilidade (vou citar a palavra com toda propriedade que, assim ele acaba acreditando). Pois, seu moço... não dá pra cobrar aqui o que se cobra em Salvador. Ou em Curitiba. O senhor sabe qual o PIB de Curitiba? ( Espero que ele não responda). Pois é, estamos falando de pessoas humildes. Aliás, humildes nem sempre. Já que as prateleiras dos produtos mais bonitos estão vazias. São pobres, pobres mesmo! O senhor conhece o significado real dessa palavra? P O B R E !

Então vou lhe dá um exemplo. Pobre... pobre não é aquele pobre de espírito. Esse é mesquinho. Pobre é aquele que quase morre de fome todos os dias. Que deve sim ter sua geladeira ou Tv como apontam os índices do IBGE, mas que a geladeira está quase sempre vazia, direi a ele (apontar um instituto de tamanho peso nessa hora é bom, por que dá força ao que se diz. Ele vai tremer nas bases). E prosseguirei: pobre ou trabalha o dia inteiro para se manter, ou tem que roubar pra isso, ou morre de fome.

O senhor, por acaso, já quase morreu de fome? Já pensou que morreu de fome? O senhor já roubou? Essa eu posso responder: sim! Roubou sim.. sabe quando? Quando aquele moço de chapéu de palha comprou o básico para o mês custando 200 reais. Quando, aqueles meninos da galinhota ficam se estraçalhando pra ganhar cinquenta centavos de lucro. Lucro não, lucro quem tem é o senhor. Esses benditos cinquenta centavos, que irão dá nuns cinco reais no final do dia, nem podem ser considerados lucro. Quanto o senhor ganha no final do dia? Pois, tudo isso é roubo mesmo.

Apois, agora eu vou lhe dizer: pobre é aquele que compra com trinta reais só o que dá!